Com efeito, se no conflito Rússia x Ucrânia está em jogo a apropriação de vastos recursos naturais pela Rússia, as chamadas “commodities”, e todas as melhores rotas de evacuação delas, para a Ucrânia, de forte inclinação histórica fascista, a oportunidade de sair da órbita de influência russa e, por consequência, minar ainda mais as bases de sustentação da vontade imperial de sua algoz, sob o beneplácito da maior potência mundial, os Estados Unidos, parecia boa demais para ser ignorada. Não por acaso, as negociações para a entrada da Ucrânia na OTAN ocorriam sem grandes alardes na grande mídia e sem pressa, talvez para pegar a Rússia desprevenida. Mas os Estados Unidos estavam atuando sorrateiramente, como mostrou o golpe de Estado contra o presidente eleito ucraniano Viktor Janucovich, no início de 2014.
Já no conflito Israel x Hamas, a questão se complica um pouco mais, porque só existe um Estado, que é Israel. O Hamas é uma milícia fundamentalista xiita que possui até um rival entre os palestinos, que é a Autoridade Palestina. Portanto, à primeira vista, não existe comparação em termos de interesses geopolíticos entre Israel e o Hamas. Mas isso é só à primeira vista, visto que o Hamas sofre influência direta do seu primo mais poderoso, o Hezbollah, que é visceralmente ligado ao Irã. Os acontecimentos mais recentes na região do Oriente Médio dão conta de uma aproximação entre Israel e alguns países da região, notadamente os Emirados Árabes, Bahrein e Marrocos, e um possível acordo com a maior deles, a Arábia Saudita, mesmo que ainda incerto, e o regime teocrático do Irã não vê com bons olhos essa aproximação. Nessa toada, a situação vexatória que Israel impõe aos palestinos principalmente na Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia, serve de pretexto para que o Irã tente barrar acordos que o deixariam praticamente isolado na região.
Uma terceira consideração precisa ainda ser analisada brevemente. Com toda certeza, impera nos dois conflitos bélicos a lógica econômica da acumulação capitalista através da guerra. Isso não é novo. Ainda que o mundo todo não esteja envolvido (nem pode estar, sob pena de vivenciarmos o fim da aventura humana na terra), todas as guerras travadas ao longo da história do animal humano tiveram, pelo menos na sombra, o interesse econômico. O que existe de novo nesses conflitos é, mais do que pode acontecer com as escaladas de ambos, a confirmação da teoria de ARRIGHI (1996), de que, enfim, o capitalismo de corporações americano encontra-se no seu crepúsculo.
Realmente, se para o referido autor a guerra reproduz um padrão repetitivo da economia mundial capitalista (Arrighi, 1996, pág. 283), ou seja, a guerra age como um motor capitalista, a gestão desse capitalismo histórico de longa duração exigiu da superpotência americana a formação de blocos cada vez mais poderosos de organizações governamentais e empresariais “como principais agentes da acumulação de capital em escala mundial”. (Arrighi, 1996, pág. 309, grifo meu) Assim, sob a égide da “financeirização” do capital promovida pela expansão tecnológica aparentemente sem limites, os Estados Unidos repetiram o padrão dos efeitos polarizadores da “financeirização” apontados por Arrighi (1996, caput 2, págs. 87 a 162), no século da Florença renascentista. O saldo que está sendo cobrado agora de forma mais impactante, já apontado por ele desde a década de 1970, está consoante à dupla tese de SCHUMPETER (1984), segundo a qual o capitalismo é tão forte que não se pode ter ideia do seu desmoronamento, ao mesmo tempo em que o seu próprio sucesso cria as condições ideais para que ele não possa sobreviver.
Ora, os Estados Unidos sabem que não podem mais com todos os imbróglios que existem no mundo. Sabem, antes de mais nada, que já vai longe a própria “Belle Époque” dos anos Reagan. Nesta terceira década do século XXI, pela primeira vez em quase um século os Estados Unidos veem pelo seu retrovisor a rápida aproximação de uma grande potência: a China. Mas não só dela, pois a Índia também chegará, ainda que tardiamente. Em outras palavras, os Estados Unidos sabem que o eixo da supremacia econômica e financeira se deslocará para o Oriente, talvez ainda nesse século. Daí sua desesperada e derradeira tentativa de envolver a todos em guerras regionais, que elas sejam prolongadas e mortíferas o máximo possível, cuidando, porém, para que não assumam proporções globais. Os Estados Unidos sabem que sem a destruição causada pelas guerras regionais, a demandar a reconstrução, que somente eles são capazes de oferecer no mundo todo, eles serão varridos pela história, como foram todas as outras potências mundiais das épocas passadas.
O risco de queda existe e, para infortúnio dos Estados Unidos, eles podem ser derrubados por duas frentes diversas: internamente, ao estilo romano, pelos imigrantes predominantemente latinos que tanto odeiam; externamente, pelas hordas chinesas e indianas que, juntas, somarão ainda neste século XXI mais de 3 bilhões de pessoas. Contudo, como a própria história ensina, os Estados Unidos não cairão (se é que cairão) sem lutar. Nenhuma potência mundial caiu sem infringir sérios danos à nova ordem que se anunciava. E é justamente por isso que se deve ter todo o cuidado com as atuais guerras por procuração. À medida que seu poderio como superpotência mundial declina, os Estados Unidos estão cada dia mais, e com mais empenho, a estimular conflitos religiosos, ideológicos, geográficos etc pelo mundo. Esses donos da guerra, e seus asseclas das potências regionais, estão, porém, a brincar com fogo. Um fogo de grandes proporções, com quilômetros de altura e largura, e capaz de produzir calor suficiente para derreter o planeta milhares de vezes…
REFERÊNCIAS:
ARRIGHI, Giovanni. O LONGO SÉCULO XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: UNESP, 1996;
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro. ZAHAR, 1984.
Obs: André Marcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL – Universidade Católica do Salvador.
Carlos Russo Jr. | Colunista na Diálogos do Sul
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