“Alice, eu não acredito em pessoas que programam começar uma dieta na próxima segunda-feira”: Reflexões sobre o vício em álcool.






Decisões que mudaram minha vida

“Alice, eu não acredito em pessoas que programam começar uma dieta na próxima segunda-feira.” Assim disse Leo, meu psicólogo naquele momento, quando contei que tinha decidido parar de beber depois do Carnaval. Leo era um senhor muito gentil, com olhos azuis acolhedores. Eu me sentia bem naquela sala enorme, numa casa que tinha uma varanda gostosa.

Naquele dia, entrei e já fui comunicando: “Eu não vou mais beber, já avisei todo mundo e agora fico contente em te informar também. Depois do Carnaval eu não bebo nunca mais”. Estava convencida de que havia estabelecido uma “data de validade” e de que iria respeitá-la. Tinha de fato me programado. Leo cortou meu barato ao comparar minha resolução aos regimes que começam às segundas. Falou, sorriu e ficou olhando pra mim.

As lembranças me ocorrem conforme escrevo aqui no blog. Uma memória puxa a outra e sempre me surpreendo: caramba, teve isso também. Naquele ano eu estava determinada a mudar radicalmente, só ia esperar passar o Carnaval, os blocos, os bailes, e depois minha nova vida teria início. Resplandecente, talvez.

Aquela cortada me deu uma raiva gigantesca: como assim? Eu estava dando uma ótima notícia e ele, justo ele, estava duvidando de mim? Não consegui ficar até o final da sessão e fui embora magoada. Ele me deixou ir.

Fui para casa chorando. De ódio (uma vítima, coitada de mim). Cheguei e logo abri uma cerveja para espairecer (sempre). Eu tinha decidido fazer uma coisa que seria boa para mim e meu próprio terapeuta estava duvidando? “Sem noção”, falei, bem petulante, meu jeito de ser com uma cerveja na mão. Liguei para minha mãe dizendo que não achava que ele era o melhor médico para mim.

E assim eu ia trocando de consultórios. Já fui uma pessoa muito revoltada com a ignorância da medicina a respeito do alcoolismo, mas hoje sei que era eu, como paciente, que dificultava o tratamento. Eu mentia, enganava, manipulava. Quando era contrariada, me dizia que o profissional não estava dando conta e procurava outro. Pra retomar do zero.

Mas do Leo eu não consegui me desvincilhar tão fácil. Tinha uma enorme admiração por ele e a tal transferência entre terapeuta e paciente funcionava: eu sentia uma espécie de paixão, uma vontade de ter um pai como ele, alguém pra cuidar de mim. Prorroguei a troca de médico e segui fiel à minha palavra até o dia D.

O que aconteceu foi que quanto mais perto estava o Carnaval, mais eu bebia. Uma despedida em grande estilo do meu maior companheiro: o álcool. Quando estava acabada de ressaca, pensava na analogia com o regime, mas logo tomava outra pra passar a dor moral e física.

Hoje entendo que se quero fazer algo diferente, é hoje mesmo que vou mexer os pauzinhos. Não importa a data. Aliás, quanto mais desafiadora for a empreitada, mais potente será minha batalha. Parar de beber depois do Carnaval era uma forma mais leve de me comprometer.

O deixar para amanhã me livrava de um compromisso com os outros (mais do que comigo) e, inconscientemente, fazia com que eu ganhasse tempo para encontrar uma desculpa e não cumprir. Porque eu mesma não queria, mas o cerco estava se fechando. Cada vez mais pessoas ao meu redor me pediam para parar.

Viver no futuro era uma prática comum no meu alcoolismo ativo. Daquela vez, ia parar na quarta-feira de cinzas (achei até elegante). Mas de repente lembrei do aniversário da Paulinha, que ia dar uma festa. Bom, seria melhor não parar justo naquele dia, então posterguei para a semana seguinte.

E consegui. Parar era fácil. Difícil era ficar sem beber, ainda mais depois de tanta saideira. Hoje, em plena recuperação, ainda fico incomodada com as bebidas que me são oferecidas. Não bebe? Por quê? Só uma cervejinha. A insistência me cansa e eu muitas vezes vou embora pra ficar quietinha em casa. Mas na ativa, a tentação era maior e eu recaía.

Hoje eu tomo decisões diárias e sempre lembro do regime na segunda-feira. Há uma sabedoria enorme nessa analogia. Com o álcool, não dá para dar mole e ficar adiando. A doença é sutil, lenta, progressiva e fatal. E infelizmente não acho que está na moda não beber, como mencionou o colunista Ronaldo Lemos aqui da Folha de S.Paulo. Vejo, sim, o oposto. Mas pode ser minha lente de alcoólatra.

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