Amigas na metade da vida: festas até as 20h, cafezin e remédios para insônia tornam-se o novo programa emocionante.




Artigo Jornalístico

Ontem saí para tomar um café, que antigamente seria uma cerveja, com uma amiga. Assim que sentamos já começamos a falar de médicos e remédios. Exame vai, exame vem, ela tira o celular do bolso: vou te mostrar uma foto. Fiquei animada, ela sempre gostou de exibir os caras com quem saía. E ainda mais animada quando abriu os dedos na tela, dando zoom na imagem. Olha que gostoso, anunciou, para finalmente me mostrar a foto de um frasco de melatonina 5mg, com trezentos comprimidos, presente que alguém lhe trouxe dos Estados Unidos garantindo seu sono até o final do ano.

Entre as amigas assombradas pelo fogacho, dormir bem virou um programa tão excitante e desejado quanto ir a um show da Madonna. E entre alguns amigos também. A pessoa de fato se prepara para a balada: toma um bom banho, acerta a luz, faz um coquetel (de vitaminas), põe uma playlist feita para aquele momento, uma placa de bruxismo, e, como nos velhos tempos, engole alguma droga —nesse caso, liberada pela Anvisa. E nem assim tem garantia de estar bem no dia seguinte, já que aos trintas anos a bebida dá ressaca, aos quarenta pizza dá ressaca e, em torno dos cinquenta, até os remédios dão.

Talvez por isso os programas passaram a ser tão bem calculados. As festas, que começavam às 22h, foram migrando os ponteiros. Começaram a marcar às 20h, desceram para o crepúsculo, tornaram-se encontros vespertinos, almoços e até cafés da manhã —pessoal, menos, por favor. Mas o pior mesmo foi uma festa surpresa para a minha professora de ginástica, marcada para quando ela chegasse na academia, antes da aula. Ou seja, às 6h30. Confesso que nesse dia me senti jovem: ainda era noite quando saí de casa a caminho do evento com minha roupa colante e meu torpor banhado à lua.

E para escolher os lugares? Antes o foco era no cardápio de frequentadores. Ninguém estava nem aí para o que havia para comer ou beber. Agora é o contrário: meus amigos encaram bar ou restaurante frequentado até pela turma da Ku Klux Klan desde que o cardápio tenha opções sem glúten, sem lactose e sem álcool. Claro que alguns ainda bebem, mas esses têm o cuidado de, antes, pedir licença médica –já estou vendo a hora que alguém vai chegar deixando uma ambulância na porta.

Não é só o fígado. É tudo. Consigo até saber quando meus amigos praticam aquela atividade rara nos casamentos, o tal do sexo, porque depois aparecem com as costas doendo. Se bem que estão sempre com as costas doendo. E os que se metem a fazer muito exercício para evitar essa dor, acabam por ferrar os joelhos, mostrando que o sujeito de meia-idade é como um cubo mágico: quando se ajeita de um lado, se desarranja do outro.

Não sei se é a idade ou o estresse causado pela corrida dos boletos, mas a memória também já não é a mesma. Quando estamos todos juntos, parece um programa de auditório: o nome daquele ator ruivo que ganhou o Oscar? A pergunta vai passando de um participante a outro, o relógio ticando, até que um abençoado finalmente dá a resposta.

Deprê? Pelo menos estamos vivos. E vou dizer que nem são as cervicais surradas, os joelhos escangalhados e os estômagos frágeis o que mais me comove. O que me toca ao olhar para os meus amigos é perceber que, depois de tantos anos, depois de tanta energia colocada na vida, de tanta saliva investida em conversas, de tanta aposta na humanidade, de tanta sola gasta em manifestações e passeatas, nós mudamos mas o mundo continua o mesmo. Ou até piorzinho.

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