Exposição de Tolkien em Roma gera polêmica sobre apropriação política de “O Senhor dos Anéis” pela direita italiana



Exposição sobre Tolkien gera polêmica na Itália

Uma inusitada exposição está em cartaz desde novembro na tradicional Galeria Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, em Roma, dedicada originalmente às artes visuais.

Em vez de telas ou esculturas, uma ala do museu está ocupada por objetos como um dicionário de dialetos ingleses antigos, uma escrivaninha cheia de papéis e um baú de viagem do século 19.

Trata-se da mostra “Tolkien: Homem, Professor, Autor”, que ficará exposta até 11 de fevereiro.

É uma homenagem ao escritor e professor universitário britânico John Ronald Reuel Tolkien, conhecido como J.R.R. Tolkien e autor de livros famosos em todo o planeta, como “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”.

Poderia ser mais um caso de um museu que se abre para apresentar atrações populares e que transitam por diferentes meios – como, no caso, o universo do escritor e seus livros.

Mas o fato da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, ter diversas vezes expressado sua admiração por Tolkien gerou questionamentos sobre a motivação da mostra no museu público, mantido pelo governo nacional.

Discurso do ‘nós contra eles’

Muitos acreditam que a identificação da direita radical com a obra de Tolkien tenha se dado de modo muito mais forte na Itália por conta da primeira tradução de “O Senhor dos Anéis” publicada lá.

Na edição, coube ao filósofo e ensaista Elémire Zolla a missão de escrever o prefácio.

Zolla não era um fascista, mas sua obra, conservadora e apegada a antigas tradições, era de alguma forma próxima à corrente ideológica dessa nova direita italiana.

Em seu texto, Zolla planta algumas sementes. Ele propõe uma leitura simbólica da obra de Tolkien, analisando a luta de Frodo e seus companheiros contra as forças obscuras como um embate entre o progresso e a tradição identitária.

Professor na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, o antropólogo brasileiro David Nemer afirmou à BBC News Brasil que os livros de Tolkien se juntam a outros que foram “apropriados” pela direita radical.

Luta contra ‘sistema globalista’

“O Senhor dos Anéis”, uma continuidade do universo inaugurado por “O Hobbit”, gira em torno de uma batalha contra Sauron, o Senhor das Trevas, e seus seguidores, que buscam dominar toda a Terra Média.

“Não é de surpreender que eles utilizem [essa narrativa] para explicar a política do ‘nós contra eles'”, diz Nemer sobre os apoiadores da direita.

“O [personagem] Frodo é pequeno, frágil, totalmente oprimido pelo sistema. Na lógica deles, nós somos os hobbits lutando contra esse sistema globalista. E vamos lutar contra todas as forças do sistema para vencer o mal. Eles usam muito isso, veem esse homem comum branco como sendo o oprimido nessa nova ordem mundial, que é o globalismo”, pontua o antropólogo.

‘Campo Hobbit’

Mas a admiração da direita italiana com a obra de Tolkien não foi invenção de Meloni.

Para entender essa conexão é preciso recuperar as ideias de um teórico italiano que se tornou guru da direita contemporânea mundial: Julius Evola.

Em 1977, os líderes da direita radical italiana resolveram transformar suas ideias e a admiração por Tolkien em um evento, que acabaria sendo chamado por detratores como a “Woodstock fascista.” Era o Campo Hobbit, um festival-acampamento com shows, debates, palestras e muita propaganda ideológica.

Tolkien era conservador?

Para o filósofo e cientista social Rocco D’Ambrosio, a apropriação de obras por grupos políticos é comum “à direita, à esquerda e no centro”.

Especificamente sobre o uso da obra do britânico pela direita italiana, o filósofo diz que é algo “pouco respeitoso e altamente questionável”.

Reinaldo José Lopes endossa que, sim, o autor britânico era uma “figura muito conservadora”.

Já o curador Oronzo Cilli da exposição na Itália afirma que a obra de Tolkien não virou simbólica apenas para a direita italiana.

Em 2023, a agência antiterrorismo do governo britânico publicou uma relação de obras literárias que poderiam funcionar como gatilho para atos da direita radical. O trabalho de Tolkien foi incluído no rol, ao lado de livros de George Orwell, Aldous Huxley e outros.

Curador conta que quando o primeiro filme baseado na obra de Tolkien foi lançado na Itália, em 2001, a apropriação política parecia superada.

“Tolkien havia voltado a ser o que realmente é: um clássico da literatura”, diz.


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