Grande sucesso da Netflix no momento, a minissérie Bebê Rena (Baby Reindeer, no original em inglês) estreou no último dia 11 e rapidamente chegou ao topo das preferências do público, no Brasil e mundo afora. Com igual rapidez, ela deu origem a farto material na mídia explorando o que ela suscita de mais óbvio: quem são os atores, detalhes de produção, o que há de fictício e de real na adaptação feita para a tela, sem falar das inevitáveis fofoquinhas pega-otário (chame de click bait, se quiser) que fazem a festa de certo tipo de produtores — e consumidores — de conteúdo.
Aqui, tratarei menos da série em si e mais do espanto que ela me causou. Bem, se você ainda não viu, eis um resumo, sem spoiler e em pouquíssimas linhas: trata-se da história verdadeira vivida pelo protagonista, o ator escocês Richard Gadd (Dona na série), a partir do momento em que, trabalhando em um pub em Londres, ofereceu um chá gratuito a uma mulher que passou a assediá-lo obsessivamente, Martha (encarnada pela atriz Jessica Gunning).
Mal tinha me refeito do impacto provocado pelo excepcional documentário Vale o escrito: a guerra do jogo do bicho (este da Globoplay), uma nova pancada com Bebê Rena. Se naquele nos choca a violência explícita dos conflitos entre bicheiros & milicianos e seus vínculos com o mundo político, policial e artístico, no drama britânico somos colocados diante de outra forma de violência, menos sanguinolenta, mas capaz de penetrar profundamente em nossa alma e nos deixar sem palavras para explicar o que vemos e sentimos.
Desfilam ao longo da narrativa roteirizada pelo próprio Gadd e dirigida por Josephine Bornebusch e Weronika Tofilska temas como solidão, obsessão, sexualidade, estupro masculino, baixa autoestima e a busca pela fama a qualquer preço.
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Registre-se, e aí vai outro sinal dos tempos, que a personagem emocionalmente mais bem resolvida da história — história com H, posto que real — é uma mulher trans, Teri (personificada pela atriz Nava Mau).
Sem dúvida, a qualidade do elenco e a competência de toda produção ajudam a explicar o êxito de Bebê Rena. Mas o sucesso da série, atrevo-me a especular, tem provavelmente menos a ver com a obra do que com a sociedade que neste momento a consome com sofreguidão.
Vivemos, afinal, a era dos reality shows. Natural que a exposição pública de temas privados, da forma mais dolorosa possível, esteja fadada a encontrar zilhões de espectadores, certo? Sobretudo quando se vê, como é o caso, coragem e honestidade extremas no relato autobiográfico.
Psicólogos, psicanalistas, cientistas sociais e filósofos estão naturalmente bem mais qualificados do que eu, apenas um jornalista esforçado, para explicar por que, nos dias que correm, dramas baseados na vida real fazem tanto sucesso. Arrisco, de qualquer maneira, a sugerir uma hipótese, que vai além do prazer, eventualmente excitante e libidinoso, de observar de fora a peculiar dança humana e os movimentos, emoções e afetos nela envolvidos.
Uma hipótese básica, chão: a vontade de descobrir no outro aquilo que não entendemos direito em nós.
Beleza, mas e aí? Por que o sucesso de Bebê Rena? Aqui, outra hipótese, que eu poderia traduzir no velho verso, clichezaço eu sei, de Renato Russo: “Vivemos um mundo doente”.
Quer dizer: a pergunta fundamental que Bebê Rena deixa em mim e no final deste texto é outro clichê, para o qual não encontro respostas satisfatórias — que diabo de mundo é este que estamos legando pra quem vem depois?