Netflix revoluciona indústria audiovisual ao divulgar dados de audiência em relatórios semestrais em decisão histórica, gerando impacto na relação com criadores e produtores.




Artigo sobre Netflix

Netflix: o início da transparência

Vista como uma caixa-preta por qualquer trabalhador da indústria audiovisual, a Netflix tomou uma decisão histórica nesta semana. A partir de agora, a empresa vai divulgar seus dados de audiência em relatórios semestrais, depois da falta de transparência do streaming servir de combustível para as greves que tomaram Hollywood. No relatório, ficou claro que havia um vácuo de informações no setor. O público recebeu com surpresa a informação de que “Agente Noturno”, uma série sem grande investimento e divulgação, foi o maior sucesso do primeiro semestre e que “Chiquititas”, de 2013 —e não uma produção nova e original da Netflix— foi o título brasileiro mais popular.

É a primeira vez que a Netflix, responsável por lançar as bases do mercado do streaming ao pôr sua plataforma no ar, em 2010, revela essas informações. Antes, ninguém —às vezes nem mesmo criadores, diretores e produtores— podia dizer se uma série ou filme eram ou não bem-sucedidos. Era preciso confiar no que dizia a empresa, que cancelava ou renovava séries, por exemplo, sem dar qualquer justificativa numérica, diferentemente do cinema e da televisão.

Há décadas, estúdios de cinema lançam dados de público e bilheteria para seus filmes, e emissoras de TV têm a audiência de séries e programas aferida por institutos como o Kantar Ibope Media. Com o levantamento “O que Nós Assistimos: Um Relatório de Engajamento da Netflix”, como foi batizado pela plataforma, agora será possível balizar o sucesso ou fracasso de filmes, séries e outros conteúdos originais da Netflix ou licenciados de terceiros, como “Chiquititas”, feita pelo SBT.

“Não ter dados de forma transparente gerava uma falta de confiança entre criadores e produtores”, disse Ted Sarandos, um dos CEOs da Netflix, ao anunciar o relatório. Segundo ele e Lauren Smith, vice-presidente de estratégia e análise da empresa americana, o movimento é uma tentativa de agradar também aos assinantes. Isso pode ser visto como a manutenção de uma relação que ficou estremecida após as tentativas incessantes de ampliar e fidelizar o público.

O relatório da Netflix, publicado a cada seis meses, vai compilar, além da quantidade de horas vistas, dados sobre a data e os territórios em que cada lançamento foi disponibilizado. Vale dizer que só entrarão no relatório os títulos que atingirem ao menos 50 mil horas vistas globalmente. Segundo a Netflix, isso equivale, no primeiro levantamento —referente ao período de janeiro a junho deste ano—, a 18 mil produções e 99% das visualizações na plataforma.

“É uma tendência termos mais transparência por várias questões. Há a publicidade se tornando parte do negócio e a estratégia de licenciamento. Quando você dá transparência para as obras, fica fácil precificar”, afirma Fabio Lima, fundador da agregadora de conteúdo Sofa Digital. Melissa Vogel, CEO da Kantar Ibope Media no Brasil, confirma a tese. “Esse conjunto de dados e metodologias permite criar uma ‘currency’ [moeda] para que todo o ecossistema de mídia, como agências, anunciantes e produtores de conteúdo, compreendam o cenário de consumo de vídeo e moldem sua estratégia”.

Os acordos com os sindicatos, embora confidenciais, forçam o mercado a liberar seus números aos dois grupos. Para os roteiristas, os estúdios precisam repassar o número de horas vistas globalmente pelos usuários para assistir a produções originais dos seus serviços. Já o negócio firmado com os atores diz que, a partir do primeiro trimestre do ano que vem, as plataformas devem revelar o número total de horas vistas em até três meses.

A pequena revolução nos serviços sem regulação na maioria dos países pode contribuir para as discussões da regulamentação do streaming no Brasil, em curso em Brasília. “Só pelos dados da Netflix, pode não ter influência, mas, se o movimento se estender, aí o debate passa a ficar mais transparente e poderemos desmistificar algumas coisas. A discussão hoje é feita com base em suposições, então ela não está madura o suficiente”, diz Fabio Lima, do Sofa Digital.

Os efeitos do relatório da Netflix aparecem nos títulos que lideram o ranking —produções que ultrapassaram o meio bilhão de horas. O relatório revela ainda tendências maiores dos hábitos dos assinantes. O filme “Nada de Novo no Front”, por exemplo, acumulou 80 milhões de horas vistas, mesmo estreando no ano passado. As quatro estatuetas do Oscar que a produção alemã recebeu em março explicam o número, que é quase o dobro do obtido por “Pinóquio por Guillermo del Toro”, lançado em dezembro do ano passado.

Em resumo, o relatório da Netflix é um marco para o mercado audiovisual, trazendo mais transparência e auxiliando na compreensão do cenário de consumo de conteúdo em vídeo, podendo abrir caminho para a regulação do setor no Brasil e no mundo. Essa mudança na divulgação de dados certamente terá impactos significativos na forma como séries e filmes são cancelados ou renovados, além de influenciar estratégias de licenciamento de conteúdo.


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