Tradição do Folguedo de Moçambique persiste em comunidades afro-brasileiras e quilombolas em meio às adversidades.

O Folguedo de Moçambique: Uma Manifestação Cultural Perpetuada

Há 200 anos, uma rebelião sangrenta de escravizados a bordo de um navio negreiro que chegava a Salvador marcou o auge do ciclo escravista de Moçambique, uma trajetória menos conhecida e estudada até hoje. Embora tenha sido de menor duração e número reduzido em relação a outros ciclos, esse período deixou marcas genéticas e culturais no povo brasileiro.

Um exemplo dessa herança cultural é o folguedo de Moçambique, uma dança de origem africana praticada até hoje em comunidades afro-brasileiras e quilombolas, acompanhando os festejos religiosos Brasil afora.

Após a rebelião de 1823, na qual os escravizados mataram os tripulantes do navio por medo de serem comidos pelos brancos em terra, o governo reprimiu duramente os escravizados moçambicanos. Um famoso quilombo na cidade de Macaé, interior da capitania do Rio de Janeiro, foi destruído e seu líder, conhecido como Curukango, foi enforcado publicamente.

Mesmo com a repressão, a cultura trazida por esses cativos persistiu. Para driblar o processo de aculturação imposto, eles se organizaram em irmandades religiosas e conseguiram manter tradições ancestrais, como o folguedo.

No Vale do Paraíba, região que recebeu um grande número de escravizados para as lavouras de café, as irmandades de devoção a São Bendito e Nossa Senhora do Rosário foram responsáveis por manter a resistência cultural negra por meio de folguedos como o Moçambique, o Jongo e a Congada.

Na pequena cidade de Monteiro Lobato, localizada no sopé da Serra da Mantiqueira, um grupo chamado Esperança ainda mantém a prática da dança de Moçambique em festas religiosas. Após a abolição da escravatura, em 1888, um grupo de recém-libertos se fixou no antigo Bairro dos Forros, onde existiu um quilombo. A partir desse lugar, a cultura afro-brasileira se disseminou.

Mesmo sem terras próprias para cultivar, o grupo de Moçambique Esperança persiste na preservação de sua cultura. Domingos Nunes, bisneto de uma mulher escravizada, nasceu e trabalhou na fazenda Buquira, pertencente ao escritor Monteiro Lobato. Ele afirma que a dança do Moçambique é um direito de levar a cultura adiante.

Atualmente, Manoel Santos Almeida é o mestre do grupo Esperança, herdando do pai a maneira de dançar e vestir utilizada até hoje pelo Moçambique. Cada grupo de Moçambique tem suas características próprias, afirma Manoel, e o grupo Esperança mantém as mesmas tradições desde 1940, quando foi formado.

O que é a dança de Moçambique

De acordo com o folclorista Luís da Câmara Cascudo, a dança de Moçambique teve origem com os primeiros escravizados trazidos para as minas de ouro em Minas Gerais, no século 18. Ao longo do tempo, a dança foi sofrendo transformações e incorporando elementos da cultura europeia católica como forma de sobreviver sem ser reprimida.

O grupo Moçambique Esperança utiliza roupas brancas, quepe branco, manto vermelho nos ombros e faixas vermelhas e azuis. As roupas vermelhas representam São Benedito e as azuis representam Nossa Senhora Aparecida. Os instrumentos musicais utilizados são o pandeiro, a caixa de repique e os guizos fixados nos calcanhares.

Na dança, os integrantes batem bastões simulando embates entre os dançarinos. O grupo, composto por 18 pessoas, ensaia em uma propriedade rural emprestada e se apresenta em festas religiosas e eventos culturais.

Fluxo forçado de escravizados da região cresceu no século 19

A vinda de escravizados da região sudeste da África, incluindo Moçambique, intensificou-se a partir de 1815, após um acordo entre Inglaterra e Portugal que abolia o tráfico negreiro ao norte da linha do Equador. Como resultado, africanos da região conhecida como Costa Mina, que inclui Nigéria e Benin, deixaram de ser trazidos para o Brasil.

Acredita-se que cerca de 358 mil escravizados oriundos da costa sudeste da África entraram na América do Sul, principalmente no Brasil. Apesar de representar apenas 6,5% do total de africanos trazidos para o Brasil, estimado em 5,5 milhões, a presença desses escravizados teve um impacto genético significativo. Uma pesquisa realizada pelo geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, revelou que 12,3% de um grupo de afrodescendentes estudados em São Paulo tinham ancestralidade materna na região onde está Moçambique atualmente.

Embora Domingos e Manoel, do Grupo de Moçambique Esperança, não saibam a origem exata de seus antepassados, eles reconhecem a dança como uma forma de reverenciar seus ancestrais africanos.

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